OS GATOS DEIXAM PEGADAS NO NOSSO CORAÇÃO

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O Gato


O gato doméstico é uma perfeita contradição. Nenhum outro animal desenvolveu uma tão estreita relação com a humanidade, exigindo e obtendo, ao mesmo tempo, uma tal independência de acções e movimentos.

O cão poderá ser o melhor amigo do homem, mas raramente tem permissão para mais do que vaguear de jardim para jardim ou de rua em rua. O cão obediente tem de ser levado a passear. O indomável gato passeia sozinho.

O gato leva uma vida dupla. No lar é um exuberante gatinho que contempla os seus donos humanos. No exterior é um perfeito adulto, dono de si próprio, uma selvagem e livre criatura, auto-suficiente e em constante alerta – nessa altura, os seus protectores humanos encontram-se completamente ausentes do seu espírito.

Jimmy

A sua transformação de animal domesticado e mimado num animal selvagem é fascinante para o observador. Os possuidores de gatos que, acidentalmente, acompanham o seu animal fora de casa, quando este se encontra profundamente envolvido numa espécie de novela felina de sexo e violência, sabem o que quero dizer. De repente, o animal fica totalmente embrenhado num intenso drama de cortesias. Então, pelo canto do olho, apercebe-se de que o dono o observa. É um estranho momento de duplo envolvimento, uma hesitação – o animal corre, volta a roçar-se nas pernas do dono e torna-se, mais uma vez, no gatinho caseiro.

Nury


O gato consegue manter-se domesticado devido à sequência da sua educação. Vivendo, simultaneamente, com outros gatos (a mãe e a ninhada) e com os humanos (a família que o adoptou), durante a sua infância, afeiçoa-se a ambos e considera-se como pertencente às duas espécies. É como uma criança que cresceu num país estrangeiro e, consequentemente, tornou-se bilingue. O gato adquire uma dupla mentalidade. Fisicamente pode ser um gato mas, mentalmente, é simultaneamente felino e humano.
No entanto, quando completamente adulto, a maioria dos seus comportamentos são felinos e tem somente uma reacção principal para com os seus donos; trata-os como pseudo-pais.

Isto porque os gatos são separados da sua verdadeira mãe num período sensível do seu desenvolvimento e os donos começam a dar-lhe leite, alimentos sólidos e conforto à medida que crescem. [...]


Os gatos possuem uma complexa organização social, mas nunca caçam em grupo. Na natureza passam a maior parte do dia em solitárias e furtivas caçadas. Ir passear com um humano não tem, por conseguinte, qualquer atractivo. Do mesmo modo, não tem qualquer interesse aprender o "vem cá", "senta-te" ou "quieto". Tais manipulações não têm, para os gatos, qualquer sentido.

Assim, logo que o gato consegue persuadir o humano a abrir a porta (a mais odiada das invenções humanas), ele sai sem olhar para trás.

Nury

Logo que atravessa o limiar, o gato transforma-se. O cérebro do "gatinho-do-homem" é desligado, e é ligado o cérebro do "gato-selvagem".

O cão, numa situação semelhante, deve olhar para trás, a fim de se certificar se o humano, companheiro de matilha, o segue, para se juntar à brincadeira da exploração, mas tal não acontece com os gatos. A sua mente já "deslisou" para um mundo totalmente felino, onde o estranho "macaco bípede" não tem cabimento.

Fafa e Dodo Dalton

Em consequência desta diferença entre gatos e cães domésticos, os amantes de gatos tendem a ser diferentes dos amantes de cães. Em regra os primeiros têm uma personalidade com tendência para as acções e pensamentos independentes. Os artistas gostam de gatos; os militares gostam de cães. O tão louvado fenómeno da "lealdade de grupo" é estranho tanto aos gatos como aos amantes de gatos. Se você for um "homem de companhias", um membro de um gang ou tiver sido escolhido para membro de um grupo, existem todas as hipóteses de que não esteja nenhum gato deitado em frente à sua lareira.
O ambicioso yuppie, o aspirante a político, o futebolista profissional não são típicos possuidores de gatos. Será difícil imaginar um jogador de râguebi com um gato ao colo – muito mais fácil será vê-lo a passear um cão.
Aqueles que estudaram os possuidores de gatos e de cães, como dois grupos distintos, dizem que também aqui existe uma tendência de géneros. Há uma grande tendência para que os amantes de gatos sejam do género feminino. Isto não nos surpreenderá se considerarmos a divisão do trabalho que foi desenvolvida durante a evolução da humanidade. Os machos pré-históricos começaram por se especializar como caçadores em grupo. Enquanto as fêmeas se concentravam na preparação dos alimentos e no tratamento das crianças. Esta diferença introduziu no "macho humano" uma mentalidade de grupo, a qual é menos marcada na "fêmea humana".

Fafá

Os lobos, ancestrais selvagens do cão doméstico, também se tornaram caçadores em grupo – desta forma, o cão moderno tem muito mais em comum com o "macho humano" do que com a "fêmea humana". Um observador antifêmea poderia referir-se à mulher e ao gato como tendo falta de "espírito de equipa"; um antimacho diria que os homens e os cães são gangsters.

Fafá


A discussão é infindável: a auto-suficiência felina e o individualismo versus a camaradagem canina e o bom relacionamento. Todavia, é importante notar que, ao apontar um aspecto válido, eu caricaturei as duas posições. Na realidade, existem muitas pessoas que apreciam, igualmente, a companhia dos gatos e dos cães. E todos nós, ou quase todos, temos elementos caninos e felinos nas nossas personalidades. Temos humores que nos levam a preferir estar sós e pensativos, enquanto, noutras alturas, desejamos estar no meio de uma sala barulhenta, cheia de gente.
Tanto o cão como o gato são animais com os quais nós, os humanos, estabelecemos um solene contrato. Fizemos um pacto sem palavras com os seus antecessores selvagens, oferecendo comida, bebida e protecção, em troca da execução de certas obrigações.

No que respeita aos cães, as obrigações foram complexas, envolvendo uma vasta gama de tarefas de caça, bem como a guarda de propriedades, defesa dos donos contra ataques, destruição de incómoda bicharia e actuando como bestas de carga, puxando os nossos carros e trenós. Nos nossos dias, um muito maior número de obrigações foi atribuído ao paciente e grande sofredor canino, incluindo actividades tão diversificadas como guiar cegos, apanhar criminosos e fazer corridas.

Quanto aos gatos, os termos foram muito mais simples e assim sempre permaneceram. Havia somente uma tarefa principal e outra secundária. Era requerido que actuassem primeiro como caçadores de ratos e, em complemento, como animais domésticos. Pelo facto de serem caçadores solitários de pequenas presas, tiveram pouca utilidade nas caçadas humanas campestres. Como não vivem numa rígida organização social de grupo, dependendo, para sobreviverem, de apoio mútuo, o "alarme" não actua em resposta à presença de intrusos no lar, razão pela qual não foram muito úteis como guardas de propriedade ou como defensores dos seus donos.

Freddy

Em consequência do seu pequeno tamanho, não puderam ajudar como bestas de carga. Actualmente, para além de partilharem, com os cães, a qualidade de animais domésticos e, ocasionalmente, as honras de filmes ou peças teatrais, os gatos falharam na diversificação da sua utilidade para o Homem. [...]

Voltando-nos para os gatos abandonados e para aqueles que se tornaram selvagens, a população selvagem, também nestes se encontram consideráveis diferenças. Os cães selvagens formam matilhas auto-suficientes, procriam e sobrevivem sem a ajuda humana nas regiões menos civilizadas: estas matilhas são praticamente inexistentes nas áreas urbanas e suburbanas. Na realidade, dificilmente se encontram nos modernos e populosos países europeus.

Fera com cobra

Mesmo os distritos rurais não as podem suportar. Quando se constitui uma matilha saudável, esta é rapidamente abatida pela comunidade camponesa, a fim de prevenir ataques às suas estirpes.

As colónias de gatos selvagens são um assunto completamente diferente. Qualquer cidade importante possui uma florescente população destes animais. As tentativas para a sua erradicação falham, geralmente, pois há sempre novos extraviados para se juntarem ao grupo. E a necessidade da sua destruição não é assim tão grande, visto que, frequentemente, sobrevivem cumprindo a sua ancestral função de caça aos ratos.

Mesmo onde a intervenção humana conduziu à eliminação de ratos e ratazanas por envenenamento, os gatos selvagens sobrevivem graças à sua esperteza, esgravatando os caixotes do lixo e mendigando dos humanos caridosos.

Muitos destes gatos de beco são patéticas criaturas no limite da sobrevivência. A sua resistência é espantosa, provando que, a despeito de milénios de domesticação, o cérebro e corpo felinos se mantêm, de forma notável, ligados à sua condição selvagem.

Ao mesmo tempo, esta capacidade de sobrevivência está na origem de grande parte do sofrimento dos felinos. Como os gatos "podem" sobreviver quando deitados fora e abandonados, torna-se fácil, para os humanos, fazê-lo. O facto de a maioria destes animais viverem em aterradoras condições urbanas – miseráveis gatos esgravatando a sua vida no meio dos detritos e imundícies da sociedade humana – pode reflectir a sua tenacidade, mas isto não passa de uma mascarada na existência felina. Esta situação, que toleramos, constitui mais um exemplo da vergonhosa forma como, repetidamente, quebrámos o antigo contrato com os gatos.

No entanto, isto não é nada, comparado com a forma brutal como, algumas vezes, atormentámos e torturámos os gatos, ao longo dos séculos. Muitos foram alvo da nossa agressividade, de tal forma que existe uma expressão popular que exprime este fenómeno: "e o aprendiz deu um pontapé no gato...". Isto ilustra a maneira como os insultos "de cima" se podem reflectir nas vítimas "de baixo" da ordem social, com o gato no extremo da escala.

Felizmente, no meio de tudo isto, verifica-se que a grande maioria das famílias humanas possuidoras de gatos domésticos tratam estes animais com cuidado e respeito.

Nury

Os gatos possuem uma maneira de serem afectuosos para com os seus donos, não só por meio do seu comportamento como "gatinho", mas também pela sua graciosidade.

O olhar humano é cativado pela sua elegância e compostura. Para as pessoas sensíveis, torna-se um privilégio compartilhar a sala com um gato, apreciar os seus "olhares", sentir o "roçar" dos seus cumprimentos ou observar a sua graciosa luxúria quando fazem uma soneca numa almofada macia.

Thai

E, para milhões de solitários, muitos fisicamente incapazes de darem grandes passeios com um cão exigente, o gato torna-se o companheiro ideal. Particularmente para quem se vê forçado a viver os seus últimos anos de solidão, a sua companhia faculta inapreciáveis recompensas. [...]

Isto conduz-me aos objectivos deste livro*. Na qualidade de zoólogo, tive ao meu cuidado, em certas ocasiões, muitos membros da família dos gatos, desde o grande tigre ao pequeno gato-tigre, do poderoso leopardo ao diminuto gato-pardo e do forte jaguar ao raro e pequeno jaguarondis.

No lar, sempre existiu o gatinho doméstico que saudava o meu regresso, por vezes com um armário cheio de gatinhos. Enquanto rapaz, cresci no Wiltshire e despendi muitas horas estendido na relva a observar a forma como os gatos caçavam as suas presas, ou espiando os seus ninhos da casa do feno, para ver como amamentavam os seus irrequietos gatinhos.
Desenvolvi, desde tenra idade, o hábito de observar os gatos, hábito que conservei durante quase meio século.

Em consequência do meu envolvimento profissional com os animais, foram-me colocadas, frequentemente, questões acerca do comportamento dos gatos e surpreendeu-me até que ponto as pessoas parecem desconhecer estes intrigantes animais. Mesmo aqueles que amam cegamente os seus animais domésticos possuem apenas uma vaga compreensão sobre as complexidades da sua vida social, comportamento sexual, agressão ou forma de caçar.

Margaridos

Conhecem bem os seus humores e tratam-nos cuidadosamente, mas não fazem o menor esforço para os estudar. Em certa medida, não é por sua culpa, dado que o comportamento de muitos felinos manifesta-se fora da cozinha ou da sala de estar. Assim, tenho esperança de que, mesmo aqueles que julgam conhecer os seus gatos intimamente possam aprender um pouco mais acerca destes graciosos companheiros, lendo estas páginas. [...]

* Guia Essencial do Comportamento do Gato (extracto)
Título original: Catwatching, de Desmond Morris, 1986
Tradução de Renato Casquilho
Publicações Europa-América