OS GATOS DEIXAM PEGADAS NO NOSSO CORAÇÃO |
Sem título |
Morreu Dom Fuas, gato meu sete anos, pomposo, realengo, solene quase inacessível, na sua elegância desdenhosa de angorá gigante, cendrado e branco, de opulento pêlo, a cauda como pluma de elmo legendário. Contudo, às suas horas, quando acontecia que parava em casa mais que por comer ou visitar-nos condescendentemente como a Duquesa de Guermantes recebendo Swann, tinha instantes de ternura toda abraços, que logo interrompia retornando aos seus passos de império, ao seu olhar ducal. Nunca reconheceu nenhuma outra existência de gato que não ele nesta casa. Os mais todos se retiravam para que ele passasse ou para que ele comesse, eles ficando ao longe contemplando a majestade que jamais miou para pedir que fosse. Andava
adoentado, encrenca sobre encrenca, |
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A
única diferença, e é melhor assim, em tão terror ambiente de ser-se o animal que morre, foi não vê-lo mais. Porque ou nós morremos, como dantes se morria em público, a família toda, ou toda a corte à volta, ou é melhor que se não veja no rosto de qualquer - mesmo ou sobretudo no de um gato que era tão orgulhoso em vida - não só a marca desse morrer sozinho de que se morre sempre mesmo que o mundo inteiro faça companhia, mas de outra solidão tecnocrata, higiénica que nos suprime transformados em amável voz profissional de uma secretária solícita. Dom Fuas, tu morreste. Não direi que a terra te seja leve, porque é mais que certo não teres sequer ter tido o privilégio de dormir para sempre na terra que escavavas com arte cuidadosa para nela pôres as fezes de existir que tão bem tapavas, como gato educado e nobre natural. Nestes anos de tanta morte à minha volta, também a tua conta. Nenhum mais terá teu nome como outros tantos gatos antes de ti foram já Dom Fuas. Jorge de Sena In "40 Anos de Servidão" Edições 70 |